A utilização desvirtuada da recuperação judicial

A recuperação judicial é um instituto jurídico estabelecido pela Lei 11.101/2005, com o objetivo de proporcionar à empresa devedora, um plano de reorganização e pagamento de suas dívidas, permitindo a continuidade de suas atividades e, preservando empregos e a economia local, além de evitar a falência, proporcionando a empresa em dificuldades financeiras, o restabelecimento da saúde econômica.

Veja a empresa Polishop, que recebeu o deferimento do pedido de recuperação, pelo Juízo da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Tribunal de Justiça de São Paulo, em maio de 2024, sob a alegação de dívidas estimadas em R$ 395,6 milhões[1].

Contudo, o uso desvirtuado desse mecanismo, pode resultar no enfraquecimento do valioso instituto, que visa garantir a manutenção das empresas, que enfrentam dificuldades temporárias, e trazer prejuízos para credores e o próprio mercado econômico.

Utilização desvirtuada do mecanismo

O principal objetivo do instituto é, viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor/empresa recuperanda, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, conforme previsto no art. 47 da Lei 11.101/2005. A Lei busca, priorizar a recuperação da atividade empresarial.

A aplicação do cram down, exige que o plano de recuperação judicial, não implique concessão de tratamento diferenciado entre os credores de uma mesma classe, que tenham rejeitado a proposta (REsp n. 1.634.844/SP, Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/3/2019, DJe de 15/3/2019.)

Na recuperação judicial, não há realização do ativo para o pagamento dos credores. Em regra, todos os credores serão pagos. Diante disso, o princípio da paridade se aplica “no que couber”, como declara o Enunciado nº 81 da II Jornada de Direito Comercial.

O que significa dizer que deve haver tratamento igualitário entre os credores, mas que pode ocorrer o estabelecimento de distinções entre integrantes de uma mesma classe com interesses semelhantes.

Tal fato se justifica pela constatação de que as classes de credores, especialmente a de credores quirografários, reúne credores com interesses bastante heterogêneos: credores financeiros, fornecedores em geral, fornecedores dos quais depende a continuidade da atividade econômica, credores eventuais, créditos com privilégio geral, entre outros.

Nesse contexto, a divisão em subclasses deve se pautar pelo estabelecimento de um critério objetivo, abrangendo credores com interesses homogêneos, com a clara justificativa de sua adoção no plano de recuperação, evitando, por outro lado que credores isolados, com realidades específicas, tenham seu direito de crédito anulado com a criação de subclasses. (REsp n. 2.039.036, Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe de 27/08/2024.)

Ocorre que em alguns casos, o procedimento de recuperação judicial é utilizado de maneira indevida, em evidente desvio de sua finalidade, destacando:

a) Uso como manobra para evitar o pagamento de dívidas

As empresas com intenção maliciosa recorrem à recuperação judicial não para efetivamente reestruturar suas atividades e quitar suas dívidas, mas como uma estratégia para evitar o pagamento de débitos, prolatando o pagamento, com a suspensão das cobranças e das ações de execuções, por exemplo.

Isso ocorre quando a empresa já está em estado de insolvência irrecuperável, mas utiliza a recuperação judicial para suspender execuções e manter bens.

b) Adoção de planos irrealistas

A apresentação de planos de recuperação excessivamente otimistas ou irrealistas, que não são condizentes com a situação financeira da empresa.

Nesses casos, a empresa busca aprovação de um plano que, na prática, não tem condições de cumprir, o que resulta em posterior inadimplemento e eventual falência.

c) Fraude aos credores

A fraude aos credores é outro problema que pode ocorrer em processos de recuperação judicial desvirtuados. Isso porque, as empresas podem manipular suas informações contábeis e financeiras para omitir bens ou tentar burlar o pagamento aos credores, comprometendo a integridade do processo.

Inclusive, o prazo denominado “stay period”, ou “período de blindagem”, com previsão no artigo 6º da Lei 11.101/05, muitas vezes são utilizados como período para a liquidação de maquinários entre outros bens que não foram informados ao juízo da Recuperação.

Em razão disso, atualmente, as empresas acobertadas de boa-fé e que se enquadram, temem utilizar o instituto da recuperação, em razão da ameaça do “fechamento das portas” pelas empresas que oferecem produtos agrícolas e créditos, principalmente, na fase inicial – “stay period” e na sua prorrogação, possibilitada com o advento da Lei nº 14.112/2020 (artigo 6º, §4º da Lei 11.101/05).

d) Manobra maliciosa ao almejar o reconhecimento de bens essenciais a sua atividade empresarial

No julgamento do REsp 1.629.470-MS, a Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti (Segunda Seção, por maioria, julgado em 30/11/2021), esclarece: “não cabe a invocação do princípio da preservação da empresa, com apoio na parte final do § 3º do art. 49 da LRF, segundo o qual durante o stay period não podem ser retirados do estabelecimento do devedor “os bens de capital essenciais a sua atividade empresarial”.”

A exemplo disso, é o caso dos direitos de crédito cedidos fiduciariamente que “não se encontram sob o abrigo de tal regra, seja por não estarem no estabelecimento empresarial sob a posse direta da empresa em recuperação, por força de sua disciplina legal específica, seja por não se constituírem “bem de capital”.”

“Para que o bem se compreenda na ressalva contida no § 3º do art. 49, é imprescindível que se trate de bem corpóreo, na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível e nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period”.

Com maior razão ainda não podem ser considerados bens de capital os títulos de crédito dados em alienação fiduciária. Trata-se patrimônio alienado pelo devedor, em caráter resolúvel, é certo, para garantia de obrigações por ele assumidas.

Considerar que a mera intenção de fazer caixa, mediante a apropriação de recebíveis (de propriedade resolúvel do credor fiduciário), possa justificar exceção à regra do art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005, implicaria tornar sem substância o regime legal da propriedade fiduciária, uma vez que recursos financeiros sempre serão essenciais à recuperação de qualquer empreendimento”.

e) Deságios excessivos

Os descontos almejados pela empresa Recuperanda, podem chegar ao deságio de 90% do valor original da dívida (como no caso levado a julgamento pelo REsp n. 2.021.576, Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe de 27/08/2024), além disso, os juros e correções monetárias ficam congeladas durante o andamento da recuperação judicial.

Por um lado, beneficia a empresa em crise financeira, por outro lado acarreta prejuízo para os credores, especialmente para pequenos fornecedores que dependem desses pagamentos para manter suas operações.

Consequências do uso desvirtuado

O uso desvirtuado da recuperação judicial pode trazer graves consequências jurídicas e econômicas. Entre elas, destacam-se:

  • Danos aos credores: Os credores são diretamente prejudicados, muitas vezes não recebendo os valores a que têm direito.
  • Desconfiança no mercado: O abuso desse mecanismo gera desconfiança entre credores e investidores, enfraquecendo o ambiente de negócios e afetando o crédito no mercado.
  • Falência inevitável: A utilização desvirtuada do instituto pode levar à falência inevitável da empresa, após a dilação do processo.

A importância do advogado no processo de recuperação judicial

Em razão disso, o advogado deve desempenhar um papel fundamental no processo de recuperação judicial, avaliando a intenção real da empresa antes do ajuizamento da ação judicial, evitando a banalização do instituto. Veja que sua atuação é crucial em diversos aspectos:

a) Orientação jurídica e estratégica

O advogado, com expertise na área, tem a responsabilidade de orientar a empresa sobre a viabilidade da recuperação, bem como sobre os requisitos legais a serem cumpridos. Ele deve avaliar a real situação financeira da empresa e propor alternativas que sejam realistas e condizentes com a legislação vigente.

b) Elaboração do plano de recuperação

A elaboração de um plano de recuperação eficaz é uma das etapas mais críticas do processo.

O advogado, em conjunto com consultores financeiros e administradores, prepara o plano que atenda tanto às necessidades da empresa quanto às expectativas dos credores, proporcionando um plano juridicamente seguro, transparente e exequível, por consequência, evitará a rejeição pelos credores ou o fracasso da recuperação.

c) Atuação em juízo e na negociação com credores

Durante o processo, o advogado é o responsável por conduzir a defesa da empresa em juízo, lidando com as execuções e demandas que podem surgir.

Além disso, ele atua como negociador junto aos credores, buscando acordos que sejam satisfatórios para ambas as partes e que possibilitem a aprovação do plano de recuperação.

d) Fiscalização do cumprimento das obrigações

Após a aprovação do plano, o advogado tem um papel essencial na fiscalização do cumprimento das obrigações assumidas pela empresa no processo de recuperação.

Ele garante que os pagamentos aos credores sejam realizados conforme previsto no plano e que a empresa mantenha a regularidade de suas atividades, evitando assim qualquer alegação de fraude ou descumprimento.

Conclusão

A recuperação judicial é um instrumento de grande relevância para a preservação de empresas em dificuldades, mas o seu uso desvirtuado pode enfraquecer o objetivo do legislador e gerar sérias consequências jurídicas e econômicas.

A atuação do advogado é crucial para garantir que o procedimento seja conduzido de forma ética e dentro dos limites legais, prevenindo abusos e assegurando a melhor solução para todas as partes envolvidas, bem como garantindo o restabelecimento da saúde financeira da empresa e a credibilidade da empresa recuperanda no mercado.

Dra. Ingridy Taques Camargo
Advogada. Expert em direito trabalhista, direito público, do agronegócio, possessório e consumidor. Ex-juíza leiga e ex-conciliadora do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Especialista em direito sistêmico, direito tributário e ciências criminais com ênfase em perícia.

 

[1] Site: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/05/20/justica-aceita-pedido-de-recuperacao-judicial-da-polishop.ghtml, acessado em 16/09/2024.
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